Novo filme de François Ozon é mais uma obra interessante e surpreendente |
O sempre surpreendente François Ozon volta com um instigante thriller psicológico
por Fábio Pastorello
O novo filme de François Ozon, jovem realizador do cinema francês e responsável por obras como "Swimming Pool"(2003) e "Potiche: Esposa Troféu"(2010), é uma envolvente história sobre a arte. "Dentro da Casa" (Dans la Maison, 2012) conta a história de Germain, um professor de francês (Fabrice Luchini, também de "Potiche" do mesmo diretor) que fica intrigado com uma série de redações de um de seus alunos. Imerso num universo em que os estudantes mal conseguem articular duas ou três frases sobre o próprio fim de semana, ele se surpreende com o talento e a ironia do jovem Claude.
Claude começa a frequentar a casa de um colega de escola e a se interessar pela vida dessa família de classe média típica, como ele próprio define. Suas vivências com essa família são o assunto das redações que ele escreve e que passam a ser consumidas pelo professor Germain.
O filme possui tantos e interessantes níveis de discussão, que tenho até receio de me perder aqui nos comentários. Por isso, resolvi me deter apenas naquele que mais me tocou, que é justamente o papel da ficção e da vida dos outros na vida das pessoas. Não que esse seja o único tema do filme, aliás, desde seu primeiro longa metragem "Sitcom", em 1998, já é possível encontrar alguns dos elementos que irão se repetir ao longo da carreira de Ozon, como a homossexualidade ou a presença de uma família em crise.
Se a estética ou os gêneros cinematográficos que Ozon adota variam sistematicamente, desde o musical de "Oito Mulheres"(2002) até o cinema fantástico de "Ricky" (2009), ou o thriller psicológico desse "Dentro da Casa", os temas que Ozon aborda em seus roteiros (ele também atua como roteirista ou co-roteirista de seus filmes, mesmo quando adaptações) se repetem e se renovam. No caso de "Dentro da Casa", o roteiro de Ozon é inspirado numa peça de teatro de Juan Mayorga.
O jovem Claude entra na casa de um colega e começa a escrever sobre a família do outro em "Dentro da Casa" |
Um dos elementos mais intrigantes da obra de Ozon se refere justamente a como seus personagens fogem da instituição familiar, de forma quase sistemática. Eles fogem deliberadamente seja através do suicídio, como o Marcel de "Oito Mulheres"; ou através da separação diante uma nítida incompatibilidade com a instituição familiar, como o Gilles de "Amor a Cinco Tempos"; ou através do isolamento, como o personagem cujo câncer o isola da família e do namorado em "O Tempo que Resta" (2005).
Os personagens da filmografia de Ozon fogem da família sempre que possível, mas essa negação pode indicar uma relação conflituosa. Se há personagens que fogem, há também aqueles que fazem de tudo para se manter nela, como a Marie de "Sob a Areia", que teme ser agora uma mulher sem marido, ou como o próprio Gilles de "Amor a Cinco Tempos", que após o divórcio deseja retomar o relacionamento. Ozon estuda o ser humano que nega a família, mas cuja vida não existe sem ela.
ATENÇÃO: a partir desse ponto, o texto contém spoilers
É o que acontece em "Dentro da Casa", com o jovem Claude, que entra na casa do colega e começa a se interessar pela família do outro (tanto que os temas de suas redações são justamente sobre essa família, e não sobre sua própria). A inserção na casa do outro é uma fuga que não somente ele vivencia, mas o professor Germain também começa a se interessar por essa família retratada nas redações de seu aluno. Jeanne, a esposa de Germain (interpretada por Kirstin Scott Thomas, de "O Paciente Inglês") também embarca nessa alienação através da família alheia.
Claude e Germain, pupilo e mentor, não necessariamente nessa ordem |
O arco dramático mais interessante é a relação entre professor e aluno, entre mentor e pupilo. Na realidade esses papéis não estão tão claros, apenas dos papéis que cada um representa. Através de suas redações, Claude consegue envolver cada vez mais Germain, que é capaz até de atos ilícitos para que Claude continue escrevendo. Por outro lado, Claude simula atenção às teorias literárias que Germain lhe ensina, mas na realidade segue sua narrativa de forma pouco convencional. Em determinado momento, por exemplo, Germain explica a Claude que o protagonista deve ter um objetivo (e obstáculos) para que a história se torne interessante, mas é justamente essa "ausência" nítida de objetivos ou motivação que torna a trajetória de Claude tão interessante.
Depois, descobriremos que o professor Germain é um escritor frustrado, que escreveu apenas um livro e nunca se julgou talentoso frente às obras que admira. Jeanne administra uma galeria de arte prestes a ser fechada pelas donas, que não consegue descobrir uma obra de arte relevante. Esse casal, que possui essa relação conflituosa com a arte (eles funcionam melhor como admiradores, mas são mal sucedidos na expressão artística), é justamente quem se envolve cada vez mais com as redações de Claude.
O casal que se interessa pela vida alheia, mal sucedidos na expressão artística |
A outra família, chamada de os Rapha (pai e filho têm o mesmo nome), é observada e retratada nas redações de Claude como a família de classe média típica, é composta por um jovem com tendências homossexuais, sua mãe cheia de tédio (Emmanuelle Seigner, esposa de Roman Polanski) e seu pai cheio de problemas no serviço (Denis Ménochet, o pai do início de "Bastardos Inglórios"). Apesar de cheia de problemas, a família que não tem contato ou domínio sobre a arte (a mãe por exemplo tem quadros do artista Paul Klee na casa mas que nunca chegou a reparar direito ou o pai que adora jogos de basquete) é justamente aquela que vive e é observada, diretamente por Claude, e indiretamente pelo casal de professor e esposa.
No que notamos que, além do tradicional tema da família em crise, que surge nas três famílias existentes no filme (a família de Claude, a família de Germain e a família dos Rapha), o filme introduz personagens anulados pela incapacidade de expressão da arte, alienados em suas vidas. Quanto mais Germain se interessa pelas redações de Claude, menos ele tem atração sexual pela esposa. E em determinado momento, Jeanne até chega a convidar os Rapha para uma exposição em sua galeria de arte, curiosa para conhecer os "personagens" das redações de Claude.
O desenrolar dessas duas famílias também é um indício de que a presença do talentoso (e malicioso) Claude foi mais prejudicial para uma família do que a outra. Enquanto os Rapha continuam como uma família típica, Germain e Jeanne, e até mesmo Claude, escolheram a fuga de sua família (o tema reincidente de Ozon) através da ficção. E nada mais emblemático que o final do filme, em que os personagens observam os dramas cotidianos e familiares que acontecem pelas janelas de um prédio. A cena final remete de forma direta ao clássico de Alfred Hitchcock, "Janela Indiscreta", que também é um tratado sobre a alienação pela vida alheia e pela arte. Ozon apresenta não o caráter nocivo da arte, mas o quanto ela pode ser perigosa para aqueles que anulam suas expressões artísticas. E eu me pergunto: o que estou fazendo aqui, escrevendo uma crítica ou invés de fazer um filme? Tudo bem, acho que a crítica também é uma forma de expressão artística. :)
Claude, um promissor escritor |
Avaliação: * * * * *
Também adorei o filme. Excelente! Muito bom seu texto
ResponderExcluirObrigado, Lu. Terminou o texto, eu já estava doido pra escrever sobre ele.
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